Panorama regional: o fentanil como ameaça emergente
O fentanil, opioide altamente potente, tornou-se tema central de alerta na América Latina. Embora a maioria dos países ainda registre números menores de mortes quando comparados aos Estados Unidos, a presença do fentanil acende preocupações na saúde pública e na segurança. Países da região adotam medidas preventivas e punitivas para evitar uma crise semelhante à vivida no hemisfério norte, com incremento de treinamentos policiais, protocolos operacionais, atualização de leis, redes de cooperação, campanhas de prevenção e endurecimento de sanções.
"As milhares de mortes provocadas pelo fentanil ilegal nos EUA e Canadá impulsionaram ações na região para evitar cenários semelhantes", resume o contexto regional o autor desta apuração.
Especialistas destacam que, apesar do foco atual na droga, o cenário regional não se resume ao fentanyl isoladamente. Há registros de uso de outras substâncias sintéticas associadas à potência do fentanyl, como nitazenos e xilazina, o que reforça a necessidade de atualização regulatória e de capacidades técnicas dos serviços de enfrentamento.
Brasil: primeiros aprendizados com cooperação internacional
No Brasil, a primeira apreensão ocorreu após treinamento promovido pela Agência Antidrogas dos EUA (DEA) em El Salvador. Meses depois, a equipe de policiais recebeu informações sobre o fentanil na forma líquida, em ampolas, o que consolidou a parceria com a DEA para treinamento contínuo sobre manipulação segura da droga e uso do antagonista naloxona, que reverte rapidamente os efeitos de overdoses de opioides. Essa experiência reforçou a necessidade de protocolos de atuação mais seguros e padronizados.
"Meses depois de voltar dessa formação, nos deparamos com esse fentanil em forma líquida, em ampolas. A DEA entrou em contato conosco e passamos a receber treinamento sobre como manipular a droga. Incluiu instruções sobre a naloxona", relatou o delegado Tarcísio Otoni, da Polícia Civil do Espírito Santo.
Costa Rica e o desafio de armar protocolos de proteção
Na Costa Rica, o vice-ministro da Segurança descreve o risco mesmo diante de concentrações baixas: o fentanil pode ser letal por contato e inhalação, exigindo protocolos especiais para entradas em determinados locais. O trabalho envolve coordenação com o Ministério da Saúde, o Organismo de Investigação Judicial, o ICD e outras entidades para assegurar a proteção de equipes e a integridade de operações.{break}
"Mesmo em baixas concentrações, o fentanil pode ser letal; por isso, implementamos protocolo especial para entrar em determinados locais", afirmou Manuel Jiménez Steller, vice-ministro da Segurança da Costa Rica.
Perspectivas regionais: UNODC e a necessidade de atualização regulatória
O Relatório Mundial sobre Drogas 2025 da ONU reforça que o fentanyl não é comum fora da América do Norte, embora outras substâncias sintéticas, particularmente nitazenos, já tenham sido associadas a mortes em várias regiões. Ignacio García Sigman, coordenador do projeto contra drogas sintéticas no Cone Sul da UNODC, argumenta pela atualização das listas de precursores químicos e pela ampliação do conhecimento técnico de juízes, promotores e policiais. Solucões como o fortalecimento de sistemas de alerta precoce e a melhoria de laboratórios forenses são apontadas como essenciais.
"Também é necessário atualizar a regulação de precursores químicos, especialmente aqueles suscetíveis de uso na fabricação ilícita de drogas sintéticas, em particular de opioides", afirmou Sigman.lockquote>Em 2024, Argentina atualizou sua lista de entorpecentes com a inclusão de 170 novas substâncias, sendo 65 relacionadas ao fentanyl, além da criação da Rede Federal de Laboratórios Antidrogas para reforçar a cooperação investigativa. A experiência argentina é citada como referência para o fortalecimento institucional regional.
Caribe e Cone Sul: casos, apreensões e evolução do crime
No Caribe, Porto Rico vive um momento crítico com overdose significativas: o território registrou dezenas de óbitos em um curto espaço de tempo, e, nos últimos três anos, somam-se mais de mil e setecentas mortes associadas ao problema. Katheryn Olivera, diretora da Administração de Serviços de Saúde Mental e Contra a Adição (ASSMC), afirma que há um plano de mitigação em desenvolvimento com o Departamento de Saúde para prevenir novos surtos.
"Há uma crise, mas queremos continuar prevenindo, orientando e mitigando", disse Olivera.No Chile, a resposta tem sido endurecer as penas para o tráfico de fentanil, com a Procuradoria Nacional destacando que pequenas quantidades já devem receber caráter de tráfico, não microtráfico. A abordagem busca reduzir a circulação de ampolas desviadas de sistemas de saúde, que, em 2024, resultou em apreensões expressivas de estoque de fentanil no país.
Peru e México: ajustes estratégicos frente a um cenário em mutação
No Peru, a polícia desmantelou a quadrilha Los Facinerosos de la Medicina Ilegal, especializada na venda clandestina de medicamentos como fentanil, morfina, tramadol e midazolam. Em março, a maior apreensão já realizada no país envolveu seis mil ampolas, avaliadas em cerca de US$ 600 mil, com destino aos EUA e à Holanda. Tais operações revelam uma circulação cada vez mais sofisticada de substâncias associadas ao fentanyl.
No México, o governo enfrenta um dilema clássico: é acusado pelos EUA de ser o maior produtor do fentanil e o epicentro da crise de overdoses, ao mesmo tempo em que reconhece o consumo interno crescente, sobretudo em estados fronteiriços como Baja California, Sonora, Chihuahua e Sinaloa. A estratégia oficial oscila entre negar produção e consumo e desmantelar laboratórios clandestinos, complementada por campanhas de alerta com o slogan "O fentanyl mata". César Raúl González Vaca, diretor do Instituto Médico Legal de Baja California, afirmou que o país está “atrasado”: drogas como xilazina já causam mortes, mas não recebem monitoramento adequado. Dados do serviço forense indicam que, entre 2022 e 2025, 20% dos corpos analisados em Mexicali apresentavam presença de fentanil, o que representa o dobro do índice observado em Tijuana. O governo, no entanto, mantém a posição de negar o avanço do consumo.
Perspectivas futuras: o que esperar da luta contra o fentanyl
Especialistas destacam que o contorno da crise pode evoluir conforme a região se prepara para cenários diferentes: desde o incremento de usos clínicos controlados até a expansão de atividades criminosas ligadas à droga. A necessidade de atualização regulatória, de capacitação institucional e de cooperação entre países continua no centro das discussões. Uma visão comum entre autoridades e especialistas é a de que a região precisa ampliar as capacidades técnicas de laboratórios forenses, aperfeiçoar as redes de alerta precoce e promover campanhas de prevenção mais amplas e eficazes. Com isso, o objetivo é reduzir a vulnerabilidade da população frente a substâncias altamente potentes e evitar que a América Latina siga a trajetória de mortes associadas ao fentanyl observada em outros países.