O Nepal vivenciou entre segunda-feira e terça-feira uma revolta sem precedentes movida pela Geração Z, que de forma contundente questionou a disparidade entre a vida de políticos e a população. O bloqueio de redes sociais, justificado pelo governo como medida para impedir a disseminação de fake news, foi visto pela juventude como a gota d’água para uma onda de protestos que se espalhou pela capital, Kathmandu, gerando confrontos, incêndios e uma crise de governabilidade.
Contexto histórico, desigualdade e fragilidade institucional
Dados do Banco Mundial destacam uma desigualdade acentuada na economia nepalesa: os 10 por cento mais ricos ganham mais de três vezes a renda dos 40 por cento mais pobres; um em cada cinco nepaleses vive na pobreza; e de acordo com dados sobre o mercado de trabalho, vinte e dois por cento dos jovens entre mil novecentos noventa e cinco e dois mil e nove estão desempregados. Além disso, o Nepal figura na lista da ONU com quarenta e quatro países menos desenvolvidos. Embora exista democracia, especialistas apontam fragilidade institucional, com a democracia eleitoral descrita pelo Índice de Democracia de dois mil e vinte e cinco, do V-Dem, como um formato ainda frágil, e com Ram Chandra Poudel ocupando a presidência, enquanto Oli, ex-primeiro-ministro do Partido Comunista, deixou o cargo durante a escalada da revolta.
Geração Z: nativos digitais que mobilizam as ruas
A força das manifestações veio principalmente da Geração Z, identificada como nascida entre mil novecentos noventa e cinco e dois mil e nove, ou seja, com faixa etária entre dezesseis e trinta anos. Esse grupo é comumente descrito como nativo digital, mais conectado, crítico e engajado em debates sobre diversidade, sustentabilidade e política, com estilos de comunicação moldados pelo ambiente online. A mobilização ganhou intensidade após o bloqueio das redes, levando os jovens a recorrer a plataformas ainda disponíveis para se organizar.
Cenário de violência, símbolos do conflito e danos materiais
As ruas de Katmandu viram cenas intensas, com prédios do governo, do Parlamento e da Suprema Corte incendiados. Em confrontos diretos, autoridades do governo foram arrastadas pela multidão e houve registro de violência policial, com uso de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Dezenove pessoas morreram na segunda-feira, e a escalada de violência manteve a pressão sobre o governo na terça-feira, contribuindo para a renúncia do premiê e para a revogação do bloqueio das redes. Os ataques atingiram também residências de autoridades, como a de ex-primeiro-ministro e a de seus familiares, além de danos a dois aeroportos e a hotéis de destaque. A fumaça provocada pelos incêndios levou ao fechamento temporário do principal aeroporto internacional, que recebe viajantes para atividades como escalada do monte Everest.
“Todo cidadão do Nepal já estava farto do governo corrupto do Nepal. A raiva contra este governo vinha se acumulando há muitos meses, mas o chamado para este protesto foi muito espontâneo”, relatou à Reuters o influenciador digital Sandip, de mil novecentos e trinta e um anos.
Com o tempo, o descontentamento ganhou as ruas e também as redes que não foram bloqueadas, impulsionando a crítica a escândalos de corrupção que favoreceram membros da elite. Enquanto as redes oficiais estavam indisponíveis, ativistas apontaram que a repressão online de certa forma impulsionou a mobilização de forma mais orgânica, com jovens buscando novas formas de se comunicar e de compartilhar informações entre si. Em paralelo, plataformas como Viber e TikTok se tornaram canais alternativos de organização e divulgação das iniciativas. Muitos nepaleses permaneceram conectados por meio dessas redes, mantendo a coesão do movimento. Em meio a essa dinâmica, o número de vítimas aumentou, alimentando uma crise de segurança pública e trazendo debates sobre a resposta institucional.
Quem pode liderar o país a partir de agora
Entre os nomes que ganharam relevância entre os manifestantes está Balendra Shah, de mil novecentos e trinta e cinco anos, ex-rapper e atual prefeito de Katmandu, eleito em dois mil e vinte e dois com uma campanha de limpeza de ruas e rios. Após as mortes de manifestantes, Shah criticou o então primeiro-ministro como um “terrorista” que não compreendia a dor de perder um filho ou uma filha. Na terça-feira, já após a renúncia de Oli, Shah pediu tranquilidade aos seus quase setecentos e oitenta e quatro mil seguidores no Instagram, enfatizando que “agora a sua geração terá de liderar o país” e que é preciso “ter paciência” e “ser cautelosos” diante do momento.
Impactos sociais, econômicos e perspectivas de futuro
A crise evidenciou a fragilidade econômica causada pela dependência de remessas de nepaleses que trabalham no exterior para sustentar suas famílias. Milhões deixaram o país para buscar oportunidades em outros países asiáticos e no Oriente Médio, enviando recursos para parentes que permaneceram no Nepal. O bloqueio de redes interrompeu contatos entre famílias, agravando o impacto humano da crise. A violência, os incêndios e os danos a infraestruturas, como aeroportos e hotéis, contribuíram para um cenário de instabilidade que, segundo analistas, exige reformas e maior transparência para restaurar a confiança pública e a credibilidade das instituições. As autoridades anunciaram a revogação do bloqueio, sinalizando uma passagem para negociações que possam pavimentar um caminho para a solução de demandas por maior responsabilidade governamental e combate à corrupção.
Perspectivas de longo prazo e implicações para a democracia
Mesmo com a renúncia do premiê, os protestos deixaram claro que a juventude está disposta a participar ativamente do futuro político do país. A Geração Z, marcada pela conectividade, é apontada como força motriz dessas mudanças, levando especialistas a observar que o Nepal, embora mantendo a aparência de democracia, precisa consolidar instituições mais estáveis. O país continua sob o olhar internacional, com o V-Dem destacando a condição de democracia eleitoral, e com movimentos que defendem maior transparência, responsabilidade e inclusão social como fatores centrais para uma transição mais sólida.