Os grandes incêndios que assolaram o Mediterrâneo neste verão vão além de eventos climáticos isolados. Eles aparecem como expressão de um sistema que tece calor, fumaça e economia de forma inseparável, revelando a interdependência entre mudanças climáticas, uso do solo e lógica de acumulação que orienta políticas públicas. A devastação não se restringe a um território específico: de Turquia a Grécia, de França à Espanha, a sequência de fogos intensifica a compreensão de que não estamos diante de estações secas pontuais, mas de uma nova normalidade climática que se transforma em norma prática.
Segundo análises, os chamados incêndios de sexta geração ardem como consequência de um capitalismo global enraizado na catástrofe climática e na destruição dos ecossistemas que sustentam a vida. O que está em jogo, segundo os autores, é a mercantilização de espaços públicos e comuns, em que o cuidado com o território fica subordinado a regras de lucro, expansão e rentabilidade. Essa leitura sugere que o fogo é menos um acidente natural do que um sintoma de um sistema que prioriza o ganho econômico sobre a resiliência ecológica e social.
As cifras reforçam a gravidade da situação. Até 2 de setembro, quase um milhão de hectares tinham sido queimados na União Europeia, um valor que supera em quatro vezes a média histórica dos últimos 19 anos (2006-2024). Em território espanhol, a magnitude da crise atingiu níveis abruptos: a área queimada passou de aproximadamente 40.000 hectares para mais de 380.000 em poucas semanas. O impacto humano também foi profundo, com dezenas de milhares de pessoas desalojadas e pelo menos oito vítimas fatais, entre bombeiros e voluntários. Além disso, infraestruturas essenciais, como a ligação ferroviária entre Madrid e Galicia, foram interrompidas, evidenciando a extensão da perturbação social causada pelo fogo.
Em termos de mortalidade associada ao calor, o sistema de monitoramento CSIC, conhecido como MACE, indicou que, até 31 de agosto, houve cerca de 16.000 mortes atribuídas ao calor moderado, extremo ou excessivo neste verão, representando um acréscimo de aproximadamente 6.000 óbitos em relação a semanas anteriores. As projeções indicam que essa tendência não se estabilizará nos próximos meses, com previsões de continuidade da pressão adversa sobre a saúde pública e servicios básicos. Em conjunto, esses números pintam um retrato de fogo que não para em apenas um incêndio: é uma expressão de uma dinâmica que continua alimentando a contagem de perdas humanas e materiais.
Uma evidência adicional de que não se trata de fenômeno isolado vem de estudos que associam o aumento da frequência e intensidade dos incêndios a mudanças climáticas globais. Um estudo recente do World Weather Attribution aponta que o aquecimento global multiplicou por 40 a probabilidade de ocorrência de condições de calor, secura e vento que alimentaram os incêndios na península Ibérica, além de intensificá-las em cerca de 30%. Esses números destacam que o evento atual não é apenas de clima extremo, mas de uma composição de fatores que deriva de padrões econômicos e de planejamento territorial que favorecem sinais de riqueza e expansão em detrimento da proteção dos ecossistemas e das comunidades locais.
Ao longo do tempo, a narrativa de que incêndios são tipos especiais de fenômeno natural tem sido desafiada por dados que mostram ligações diretas entre políticas de território, investimentos públicos e a vulnerabilidade de áreas rurais. Conforme o texto, não se trata de uma mera coincidência: os incêndios têm servido como indicadores de um sistema em combustão, impulsionado pela busca contínua por lucro, privatização de áreas comuns e ocupação de terras que muitas vezes desconsideram a capacidade de regulação natural dos ecossistemas. Em termos práticos, isso se traduz em cortes de recursos para prevenção e combate, que caíram pela metade nos últimos 13 anos. A narrativa sugere que a crise não reside apenas na falta de chuvas, mas na erosão de políticas que deveriam proteger a vida ao longo do tempo.
Frente a esse cenário, o debate público encerra uma polêmica que não é apenas técnica, mas política. Um exemplo específico foi a afirmação do presidente da Generalitat de Cataluña de que “sobran bosques”, uma declaração que suscita reação em regiões mediterrâneas onde as florestas cumprem funções cruciais — desde o sequestro de carbono até o amortecimento das temperaturas locais. Mesmo diante da percepção de degradação de parte da mata, a proteção e a gestão adequada dos ecossistemas florestais permanecem vitais para manter a resiliência diante de eventos extremos. Em síntese, eliminar massa forestal não é a solução; o foco deve ser uma gestão adaptativa que preserve a biodiversidade, reduza biomassa de forma sustentável e fortaleça vínculos entre comunidades e território.
Sobran bosques
Esta frase foi proferida pelo presidente da Generalitat de Cataluña e desperta debates sobre o papel das florestas na resposta aos incêndios.
Para enfrentar a crise, a ideia central é estabelecer uma relação renovada com o bosque por meio de um modelo de gestão adaptativo. A proposta envolve revisar a arquitetura florestal, proteger e promover a biodiversidade, intervir sobre a biomassa acumulada sem degradar os solos e, sobretudo, restabelecer a conexão entre comunidade e território. O texto também aponta para o degrowth — uma estratégia que busca desconectar o consumo de valores globais de produção e promover maior soberania do Sul Global — como caminho potencial para reequilibrar a dissociação entre campo e cidade, onde o campo tem sido reduzido a fornecedor de recursos para a indústria turística e urbana. Além disso, a proposta envolve planejamento e investimento ecosociais com uma visão política que transcenda o curtíssimo prazo, a fim de construir resiliência de longo prazo.
Neste contexto, surgem movimentos de resistência que representam alternativas ao modelo dominante. Comunidades que praticam agroecologia, vilas que defendem seus territórios frente a pressões neoliberais ou ocupações coloniais — da Amazônia à Palestina —, e movimentos por justiça climática que propõem formas diferentes de habitar o mundo, iluminam a possibilidade de um futuro em que a vida esteja no centro das políticas públicas. Em síntese, a queima de bosques não apenas revela a falha de um sistema, mas alimenta a construção de outras formas de organização social e territorial que buscam reduzir desigualdades econômicas e ecológicas.
Alejandro Pedregal, pesquisador do Consejo de Investigaciones de Finlandia na Universidade Aalto, também acumulando trabalhos como escritor e cineasta, aponta que seu livro mais recente — Incendios: Uma crítica ecosocial do capitalismo inflamável (Verso Libros, 2025) — oferece uma leitura que conecta fogo, estruturas de poder e a economia do capital com o contexto contemporâneo de crise ambiental. Ao apresentar uma visão integrada entre ciência, política e cultura, Pedregal reforça a tese de que o fogo não é apenas um fenômeno da natureza, mas uma expressão de uma ordem socioeconômica que precisa ser transformada para que a vida possa prosperar em equilíbrio com os ecossistemas. Essa obra enfatiza a necessidade de mudanças profundas no desenho institucional e econômico para que o cuidado ambiental se torne prioridade pública.