Formatura em Olinda gera polêmica com funk que faz alusão a estupro
Um vídeo de uma formatura em Olinda viralizou ao mostrar uma confusão causada pela música "Helicóptero", que faz alusão a estupro. O tumulto gerou reações de artistas e alertas sobre a normalização da violência de gênero. A socióloga Silvana Mariano destaca que tais letras tornam a violência "tolerável". A discussão envolve a responsabilidade social no conteúdo musical e a necessidade de maior empoderamento feminino na indústria.
As imagens mostram adolescentes em trajes de gala, em meio à decoração pomposa característica de uma festa de formatura. O clima de celebração, no entanto, acabou interrompido por uma confusão generalizada, depois que o DJ colocou para tocar um funk com clara alusão a estupro. O vídeo que mostra o tumulto viralizou nas redes sociais e gerou reação de artistas do próprio segmento, que questionam o teor da letra, além de alertas sobre o risco de se normalizar a violência contra a mulher, sobretudo em um ambiente repleto de jovens.
A formatura era de alunos do 3º ano do ensino médio do Colégio Madre de Deus, em Olinda (PE). Segundo testemunhas, o funk que deu início à confusão já havia sido reproduzido pelo menos duas vezes na festa. Trata-se de “Helicóptero”, lançada em 2019 por DJ Guuga e MC Pierre, que acumula 66 milhões de reproduções no Spotify e mais de 51 milhões de visualizações no YouTube, onde é exibido um alerta de “letra explícita”.
Os autores descrevem uma situação na qual dois homens estão em um helicóptero e exigem que uma passageira faça sexo com eles sob ameaça de ser jogada da aeronave caso se recuse. No vídeo que repercutiu, o pai de um dos alunos aparece subindo ao palco e interrompendo a apresentação do DJ responsável pela seleção, enquanto tentava o expulsar do evento. “Vocês são crianças. Você acha isso certo? Se não der a ‘x...’, vai jogar a menina lá de cima?”, questiona uma mãe que aparece no registro.
O DJ Vitor Bayma, contratado para a festa, se manifestou em postagem nas redes sociais. “Cada formatura tem uma história. A minha parte foi fazer ela ser inesquecível”, afirmou. Pioneiro do funk, Fernando Luís Mattos da Matta, o DJ Marlboro, reagiu na própria publicação do colega de profissão. “Penso eu que desejamos ser inesquecíveis pelas boas ações, pois nosso legado é o reflexo do que somos”, argumentou. Marlboro também abordou o caso no próprio perfil, em texto no qual defende que a letra em questão descreve um estupro coletivo. “Somente um funk com qualidade e responsabilidade poderá nos proporcionar prosperidade e longevidade”, arrematou.
Em nota, o Colégio Madre de Deus frisou que não tem relação com a organização da festa e que “não possui participação nem responsabilidade pela escolha das músicas, decoração ou quaisquer outros aspectos” do evento.
Para Silvana Mariano, socióloga e coordenadora do Laboratório de Estudos de Feminicídio (Lesfem), da Universidade Estadual de Londrina (UEL), o problema central não é a música como um “objeto isolado”, já que a letra não é responsável, por si só, pela violência contra a mulher. Ela opina, porém, que seu conteúdo contribui para normalizar o crime e torná-lo “tolerável” e “socialmente praticável”: — Quando a coerção sexual e a ameaça de morte aparecem como “brincadeira”, “aventura” ou “diversão”, a agressão deixa de ser percebida como violação e passa a ser consumida como entretenimento.
A acusação de apologia, levantada pelos pais na festa, está tipificada no Código Penal. Para que uma letra de música seja tecnicamente enquadrada como apologia ao feminicídio, é necessária a manifestação pública (como em shows) e um teor que exalte, elogie ou justifique o crime. Segundo Tatiana Naumann, advogada especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher, a canção apresenta elementos fortes nesse sentido, embora o enquadramento não seja automático: — A letra não se limita a narrar uma situação fictícia ou descrever um fato violento de forma neutra. Ao contrário, ela constrói um discurso em que a violência é funcional, instrumental e legitimada: há ameaça explícita de morte e coação direta para obtenção de ato sexual.
Críticas similares já ocorreram antes. Lançada em 2017, a música “Medley Toca Aquela”, do DJ FP do Trem Bala, incentiva que mulheres sejam dopadas e abusadas sexualmente. Mesmo com o conteúdo controverso, a faixa tornou-se um hit, acumulando mais de 9 milhões de visualizações no YouTube. Um ano depois, em 2018, o cenário repetiu-se com MC Diguinho e a música “Só surubinha de leve”. A letra, que sugeria que mulheres fossem alcoolizadas, violentadas e abandonadas na rua, levou a plataforma Spotify a retirar a faixa momentaneamente do ar após acusações de apologia ao estupro.
Para Samuel da Silva Lima, doutor em Educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e especialista em cultura do funk, essas músicas não fazem parte do verdadeiro movimento do gênero — são, na verdade, um reflexo da sociedade. — O funk nos dá a liberdade para projetarmos as nossas ações. Ou seja, nós podemos escolher os nossos lados. O lado do cantor dessa letra está claro. Só que isso não é um problema do movimento em si, mas que vem da sociedade em que vivemos — sustenta.
A pesquisadora musical Michele Miranda, autora do livro “Funk Dela: A história contada pelas mulheres”, corrobora essa visão. Segundo ela, referências a relações consensuais pertencem ao campo da liberdade sexual, enquanto letras que descrevem atos de violência configuram apologia ao estupro. Para compreender como esse tipo de discurso se estabeleceu, Miranda aponta para a histórica exclusão feminina na criação das músicas, uma marca da indústria musical global, não apenas do funk. — O objetivo deve ser fomentar e empoderar mais mulheres como compositoras e artistas. Hoje, os hits ainda são dominados por homens — lamenta Miranda.
Uma das primeiras artistas a superar essa barreira, Valesca Popozuda lembra que o Brasil vive um momento “muito grave”, com casos diários de feminicídio. Famosa pelas letras quentes, que pregam o empoderamento sexual feminino, a funkeira destaca que se uma música “ameaça uma mulher não é arte”: — Como mulher e como artista, eu não posso normalizar letras que fazem apologia à violência de gênero. Mesmo porque eu sei o papel educativo que a música pode ter. Ela lembra, entretanto, que isso não é um problema exclusivo do funk, fazendo coro com Michele Miranda: — Tem muita letra machista, preconceituosa e violenta no sertanejo, no forró, no pagode, na MPB. Talvez, se mais mulheres estivessem no centro da criação, da produção e dos palcos, esse tipo de discurso não fosse tratado com tanta naturalidade. A gente precisa ouvir mais as mulheres, dar espaço para as nossas narrativas, porque somos nós que sentimos na pele.