O uso ilegal do fentanil no Brasil está em ascensão, associando-se a misturas com opioides como nitazenos — substâncias cerca de 40 vezes mais potentes — e ligando redes de narcotráfico a um comércio cada vez mais sofisticado. Embora o País ainda esteja atrás de várias nações da América Latina em termos de prevalência, as evidências apontam para uma dinâmica de expansão que preocupa autoridades, profissionais de saúde e operadores de polícia. Em operações recentes, o fentanil foi identificado no Espírito Santo e em São Paulo, enquanto os Estados Unidos intensificam a pressão regional no combate ao narcotráfico e classificam algumas facções como terroristas, demonstrando o peso da questão no cenário internacional.
Panorama atual e números-chave
Dados da polícia técnico-científica de São Paulo indicam que nitazenos estavam presentes em 95% das apreensões de opioides no estado, e em 71% desses casos misturados com outras drogas, principalmente canabinoides sintéticos, também conhecidos como drogas K. Além do Brasil ser incipiente comparado a outros países, a presença de nitazenos sinaliza uma etapa de evolução do mercado de drogas sintéticas no país.
Ao menos 3.753 ampolas de fentanil foram apreendidas no Brasil desde 2009. Entre 2022 e 2024, a Polícia Federal informou ter apreendido apenas 22 ampolas, enquanto a Polícia Civil do Espírito Santo revelou ter coletado 332 frascos nos últimos dois anos, em cinco operações diferentes.
A primeira apreensão de fentanil em laboratório do tráfico no Brasil ocorreu em 2023, em Cariacica, Vitória, quando 31 frascos foram encontrados junto a maconha e cocaína. Em resposta, a Anvisa atualizou uma portaria para incluir três precursores de fentanil na lista D1, o que levou ao controle pelo Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad).
Caráter da circulação e modos de uso
Segundo Tarcísio Otoni, delegado do Denarc/ES, a circulação do fentanil está ligada às redes já existentes do narcotráfico tradicional. Em Cariacica, todas as apreensões desde 2023 indicaram que o fentanil chega na forma líquida, em ampolas de uso hospitalar, sugerindo desvio dentro da cadeia legal de distribuição.
“Nossas operações têm indicado que o fentanil tem sido utilizado de duas formas pelo crime organizado: seja misturando a outras drogas para potencializar os efeitos, e também na sua forma pura, in natura.”
— afirma o delegado Fernando Santiago, que dirigia a Denarc de São Paulo entre 2021 e 2025, ao GLOBO.
Sobre o uso puro, Fernando Santiago explica que o consumo do fentanil em sua forma isolada é exceção, normalmente restrito a profissionais de saúde com acesso à substância. Em termos práticos, o fentanil é utilizado para reduzir a quantidade de cocaína necessária na mistura, com apenas uma ampola capaz de diminuir a cocaína em até 12%, mantendo os efeitos desejados sem aumentar o peso da droga fornecida ao usuário.
“O fentanil é um medicamento escasso, porque o traficante não consegue comprar da China, que é quem comercializa o Fentanest.”
— afirma Fernando Santiago, ressaltando a natureza oportunista do uso criminoso e as dificuldades de aquisição.
Outro aspecto do caso é o desvio de receitas e insumos. Segundo o relatório, o uso do fentanil no tráfico é frequentemente abastecido por roubos de cargas hospitalares ou furtos de hospitais, com traficantes buscando ampolas para uso direto ou para fabricar misturas. A afirmação de que o foco principal está no Primeiro Comando da Capital (PCC) reflete a percepção de que esse grupo tem atuado com operações de desvio em várias cidades, como Arujá, onde uma Organização Social da Saúde administrava a coleta de lixo de um hospital e, quando as ampolas estavam perto do vencimento, eram desviadas para o comércio ilícito.
“Veja: Cartéis mexicanos testam fentanil em pessoas em situação de rua e pagam para injetarem a droga.”
— uma referência citada no material, refletindo a percepção de uma rede criminosa que atua na fronteira entre o controle institucional e a prática de desvio.
Efeitos na saúde e compreensão do mercado
Do ponto de vista clínico, especialistas destacam que a combinação de fentanil com cocaína não é simples de entender, pois cada droga pode alterar o efeito da outra. Francisco Bastos, pesquisador da Fiocruz, explica que os opioides tendem a amortecer o pico da cocaína, enquanto a cocaína pode neutralizar parte da depressão causada pelo opioide. Em termos de mercado, a relação entre oferta, demanda e repressão molda as escolhas dos traficantes, com o cancro de cannabis sintética também ganhando espaço no mix de adulterantes.
“É difícil para a gente que é da área da saúde compreender a lógica do mercado ilegal, porque é como se um cortasse o efeito do outro. Os opioides cortam aquele pico que a cocaína dá, e por outro lado, a cocaína corta a possível baixa que você tem quando usa opioide.”
— afirma Francisco Bastos, pesquisador da Fiocruz e autor de estudos sobre fentanil no Brasil.
Ele acrescenta que, historicamente, quando as autoridades relaxaram a repressão ou o mercado se mostrou promissor, novas substâncias entraram no circuito, citando o exemplo histórico do crack como referência de dinâmica de mercado diante de pressões de repressão. A equipe de pesquisa de Unicamp também monitorou a detecção de uso abusivo do fentanil no Brasil, que remonta a 2016, no Centro de Assistência Toxicológica da universidade, com uma média de intoxicações por semestre desde então, predominantemente associadas a uso não intencional de drogas adulteradas.
Quanto aos nitazenos, a ciência brasileira ainda está se organizando. A liderança do laboratorial da Unicamp aponta que, nos últimos tempos, esse grupo de compostos parece ter ganhado espaço por meio de canabinoides sintéticos — substâncias que se apresentam como alternativas ao THC, mas que se afastam de qualquer semelhança com a cannabis tradicional. O laboratório indicou que, embora o nitazeno tenha aparecido recentemente nas análises da Polícia Científica de São Paulo, ainda não existem protocolos oficiais de detecção amplos para o composto no Brasil, o que dificulta o monitoramento. A subnotificação é vista como provável, dada a relação entre apreensões e consumo na ponta da população.
Regulação, histórico e resposta institucional
A história regulatória envolve ações da Anvisa, que, em resposta aos achados, alterou uma portaria para incluir precursores de fentanil na lista D1, permitindo controle mais rígido pelo Sisnad. O episódio de 2023, quando o fentanil foi apreendido pela primeira vez em um laboratório clandestino em Cariacica, Vitória, levou a mudanças importantes na governança de precursors e na cooperação entre as polícias federais e estaduais.
O pesquisador José Luiz da Costa, da Unicamp, que coordena o laboratório toxicológico da instituição, destacou que a detecção de uso abusivo do fentanil remonta a 2016, e que a pressão por políticas públicas incrementa a necessidade de monitoramento mais fino da cadeia de abastecimento. O laboratório histórico tem acompanhado a evolução gradual do tema, com novas substâncias entrando no circuito à medida que as reações de repressão mudam ao longo do tempo.
Perspectivas futuras e implicações estratégicas
Especialistas ressaltam que o Brasil ainda está em estágio inicial para o enfrentamento dessa ameaça, com a necessidade de ampliar a vigilância laboratorial, ampliar a cooperação entre estados e reforçar o controle de insumos hospitalares para reduzir o desvio de ampolas. Há também a necessidade de entender melhor o impacto das misturas com nitazenos na saúde pública, incluindo potenciais efeitos adversos a longo prazo, que ainda são objeto de estudo. A presença de fentanil e nitazenos, associada a redes já estabelecidas de narcotráfico, reduz a distância entre o mercado ilegal e o consumidor final, elevando o desafio para agentes de segurança e de saúde.
As autoridades brasileiras destacam que as operações de apreensão, embora ainda relativamente restritas, apontam para uma mudança na forma de operação das facções criminosas, com desvio de insumos hospitalares, uso de rotas clandestinas para o envio de fentanil líquido em ampolas, e a prática de misturas com cocaína para intensificar o lucro, ainda que com menor quantidade de produto ativado. O panorama internacional, com a pressão de autoridades norte-americanas e a classificação de algumas facções como terroristas, reforça a necessidade de cooperação transnacional para interromper redes de produção e distribuição.
Em síntese, o Brasil está diante de uma ameaça crescente do fentanil, com a presença de nitazenos ganhando espaço no mercado de drogas sintéticas e com o papel de redes criminosas já estruturadas. Enquanto as investigações avançam e as regulações se fortalecem, o desafio é evitar que o cenário se torne mais perigoso para a população, com impactos diretos na saúde, na segurança pública e nos cofres públicos que lidam com o custo desses crimes.